Uma história de amor #2

4 Fevereiro , 2014

Quem conhece a I. não fica indiferente e gosta dela no final dos primeiros cinco minutos de conversa. Parece frágil, por ser magra, magrérrima , por ser um doce e por ter sempre um sorriso meigo estampado no rosto. Conheci a I. numa das sessões que nos fez para a After Click, desde aí ficámos amigas e sigo a sua história, com uma grande admiração.
Esta, é mais uma história de um grande amor e de uma força que, nós pais, vamos buscar, nem que seja ao fim do mundo. Não é uma história de pena. Nem pensar!É uma história de vida, real, com protagonistas de pele e osso, que nos mostram que  nem mesmo os maiores desafios e provas que tiveram de passar os fizeram pensar em desistir ou alguma vez não acreditar que conseguiriam ultrapassar uma das piores provas das suas vidas.
Ter este testemunho, hoje, quando faz exactamente uma ano que o B. foi operado, foi para mim muito especial. Tenho a certeza que depois de lerem vão perceber e gostar tanto ou mais da I, que eu.

“Bart beat better

Programámos tê-lo, pensámos nos nomes, imaginámos o quarto, as feições, o feitio e as
cores. Só não imaginámos que teríamos uma história para contar. Do fundo do coração.
Na última ecografia morfológica, às 32 semanas, depois de meia hora de silêncio, a médica
disse-nos que o bebé estava muito irrequieto, que o coração era dos órgãos mais difíceis de
ver e pediu-nos para fazer um ecocardiograma fetal, só para ter a certeza de que estava
tudo bem. Perguntei-lhe se era mesmo essa a razão. Anuiu com a cabeça. Acreditámos.
Na mesma semana conseguimos uma marcação num cardiologista. O mesmo silêncio. O
médico dá o exame por terminado, desliga o ecógrafo e diz: “Temos um problema”. Gelei.
Íamos tão descontraídos que levei a minha irmã. Nunca tinha assistido a uma ecografia
e estava doida para ver o sobrinho. Olhei para ela e mal ouvi a primeira frase disse-
lhe baixinho: “Vá chamar o Lourenço”. O diagnóstico era, à partida, “simples”: defeito
completo do septo. Uma comunicação total entre as aurículas e uma pequena comunicação
entre os ventrículos. Pela explicação do médico era simples e a correcção era “banal”.
Teria que ser sempre operado mas podia acontecer até 1 ano de idade e até lá teria uma
vida perfeitamente normal. Ouvi tudo hirta, com as mãos cerradas e os olhos turvos. Saí do
consultório e caiu-me o mundo.
Era uma sexta feira à tarde, de Dezembro. Estava um dia lindo de inverno. Já não podíamos
ir a lado nenhum. Falei com a obstetra e pedi-lhe para nos receber logo na 2ª feira. Chorei
toda a noite, todo o fim de semana. Cheia de perguntas sem resposta, cheia de medos sem
fim, cheia de um egoísmo de “porquê eu?”.

o B., um amor de bebé

Mal entrámos no consultório perguntei: “Não é só isto pois não?” Havia uma grande
probabilidade de ter Síndrome de Down. Este defeito do coração é 99% das vezes indicador
de mais problemas. Lembro-me de respirar fundo e pensar: “Alguém me explica porque é
que é quis ter um filho?”
Não valia a pena fazer testes e exames para termos a certeza. Só poria em risco a vida do
bebé. E a minha. Faltava um mês. Só podíamos esperar.
Não googlámos, não pesquisámos. Nada. Esperámos com a certeza de que tudo o que viesse
viria bem, porque era nosso filho.
Temos a sorte de ser amigos de um dos maior cirurgiões cardiotorácicos do país. Não
hesitámos em pedir ajuda. Fomos encaminhados para o Hospital de Santa Cruz e a cada
consulta o problema que inicialmente era “fácil de tratar” foi ficando mais complexo.
Afinal as válvulas mitral e tricúspide também não existiam. Havia uma única que substituía
(mal) as outras duas.
Nasceu dia 24 de Janeiro de 2011 no Hospital CUF Descobertas, de cesariana, sem T21.
3.520kg e 48 cm e rodeado dos melhores médicos do país, para nós os melhores do mundo.
Teria corrido tudo bem e teria vindo para casa, esperar pela altura certa de corrigir o
defeito, ao fim de 3 dias como qualquer outro bebé se as surpresas não aparecessem.
Quando nasceu os pulmões não se adaptaram à vida extra uterina e o canal arterial (liga a
artéria pulmonar à aorta. antes de nascer faz a função dos pulmões mas cá fora deixa de
ser preciso) não fechou. Os pulmões não ficaram a funcionar na perfeição porque o canal
não fechou e o canal não fechava porque os pulmões não deixavam. E isto tornou-se um
ciclo vicioso.
Só o vi com 12 horas, só lhe toquei com 24 e só o peguei ao colo com uma semana.
Viamo-lo por vidros e portinhas mínimas. Cheio de fios, tubos e saquinhos que debitavam
medicação gota a gota. Era esse ritmo lento, dos pingos, que marcava os nossos dias. Não
passavam, não melhoravam, não terminavam. Assisti a enfermeiras dizerem-me que se
alguma coisa acontecesse com o B que não queriam que fosse no turno delas. Lembro-me
de pensar que o meu turno era eterno e que o resolveria na maior.
Ficou na CUF uma semana para estabilizar a parte pulmonar e no dia 1 de Fevereiro, foi
transferido para o Hospital de Sta Cruz, para ficar sob observação não fosse o canal fechar
por si e correr tudo mal…

que ternura

O canal continuou sem fechar durante 15 dias. Aquela bola redonda foi mirrando, secando
dos diuréticos que tinha nas veias e emagrecendo. Estava a morrer e não percebemos.
Ninguém nos disse. Só mais tarde. Por precaução (e impotência) decidimos baptizá-lo,
mesmo na ignorância.
No dia 15 de Fevereiro foi operado para remediar o problema. Fecharam o canal arterial e
foi preciso, também, colocar um banding na artéria pulmonar (AP) por estar a debitar 4x
mais sangue para os pulmões do que o normal.
Seguiram-se 3 dias de cuidados intensivos e mais 15 de enfermaria. 48 dias de uma vida de
fios, tubos, apitos, cicatrizes e corações enormes.
Passaram 8 meses até ser internado outra vez. 8 meses difíceis. Rodeados de
medicamentos, de cuidados e persistência. Não crescia, não engordava, pouco se mexia.
Cansava-se mais que a conta, e não comia o suficiente para o que gastava a respirar.
Em Novembro foi internado novamente. Comparado com o mês e meio inicial uma noite não
custou nada. Cateterismo para alargar o arco aórtico. Tudo o resto se manteve: o defeito
completo e o banding.
O timming para a correcção total seria, sensivelmente, aos 8kg o que deveria acontecer
perto de fazer um ano. Tamanho suficiente para suportar tudo o que a cirurgia implicava.
Nunca mais lá chegava. Teve durante, pelo menos, 3 meses nos 6kg. Parecia-nos um
pesadelo. Inventei tudo o que pode ser inventado para comer mais, para ter mais energia
e, consequentemente engordar. Nada.
Além da comunicação total das aurículas e da comunicação parcial dos ventrículos havia
(mais) um assunto que não nos deixava dormir. O ventrículo esquerdo era mínimo. Cerca
de um terço do tamanho do direito. E essa medida, mínima, ia decidir o futuro daquele
coração, daquele miúdo e desta família.

um dia vai poder ler as palavras corajosas, carregadas de amor que a sua mãe escreveu para ele.
leiam aqui, mas preparem os lenços que as lágrimas vão cair

Foram meses a fazer exames para tentar saber ao certo quanto media. Se crescia
proporcional ao direito ou se ia aumentando isoladamente. Nunca chegaram a nenhuma
conclusão. Pensámos ir ao outro lado do mundo mas o nosso mundo era aqui, com os
médicos que nos davam segurança para ficar. Segundo eles era “no limite” por isso estavam
duas hipóteses de cirurgia em cima da mesa:
– correcção biventricular (completa) – fecharem as comunicações entre as aurículas (CIA
– comunicação interauricular) e os ventrículos (CIV – comunicação interventricular) e
ficar com as 4 cavidades como qualquer um de nós. A cirurgia seria de risco, feita em
bypass (com o coração fora do corpo), mas a qualidade de vida seria óptima. A maior
dificuldade para o fazerem era o tamanho do ventrículo esquerdo e a possibilidade de
não ter capacidade para trabalhar sozinho quando a CIV for fechada e, por consequência,
não sair da sala de operações. Se não fosse possível esta correcção far-se-ia a cirurgia de
Fontan que seria feita em duas fases: a primeira, baseava-se em unir a veia cava superior
à artéria pulmonar excluindo algum tipo de procedimento no coração. A segunda feita aos
4 ou 5 anos unindo a veia cava inferior à artéria pulmonar. Era um procedimento paliativo,
não correctivo. Viveria com meio coração activo, a vida ficaria muito limitada chegando
perto dos 20 anos muito debilitado. Talvez um dia precisasse de um transplante.
Em qualquer uma das opções seria sempre tirado o banding da artéria pulmonar.
Decidiram marcar a cirurgia mesmo sem saberem o que iam fazer. O B tinha acabado de
fazer dois anos. Não andava, ficava roxo sempre que o tentava fazer e era, para nós, um
sufoco. Tinha acabado, por sorte, de chegar aos 8kg.

Faz hoje 1 ano.

uns pais coragem, mas um bebé corajoso e tão, mas tão querido

Naquela noite não dormi. Estive com ele ao colo parte da noite a comtempla-lo. Não sabia
se o veria outra vez e se poderia ter uma noite daquelas. Só os dois, colados. Entregámo-
lo de manhã a um enfermeiro, ainda a dormir. Dei-lhe o maior beijo que alguma vez
darei a alguém, aos soluços e não o vi mais. Não sabíamos o que iam fazer. Só medindo
o ventrículo no local é que decidiriam. Meio mundo em Santa Cruz, eu atarantada, o
Lourenço mudo. Do café da esquina para a entrada do hospital, do pátio para a estrada.
Conversas de circunstância, silêncios apavorados. Só pensava no B. Deitado numa cama com
estranhos à volta. Impotente, como nós e a lutar pela vida como já tinha feito tão bem.
E no cirurgião. Na decisão de ter a vida de uma criança nas mãos na dúvida de saber se
acordaria e na responsabilidade de ter de o dizer aos Pais.
Ao fim de 4 horas, o cardiologista diz-nos que esteve no bloco e está tudo a correr bem,
sem nos dizer por qual das intervenções optaram. Tic tac, tic tac. Mais duas horas e uma
mensagem escrita de um amigo: “Tenho um anjinho a dormir profundamente ao meu
lado” E notícias?! E o que lhe fizeram? Mais uma hora e o mensageiro vem ter connosco:
“Optaram pela correcção completa. Estão à espera que saia de bypass” Nada de alívio. A
saída de bypass é a altura mais complicada de uma cirurgia. O coração é substituído por
uma máquina e reconstruído “cá fora”. A altura de reverter o processo é a mais difícil. O
corpo pode não saber restabelecer a circulação sanguínea. Chorei. Chorei tanto. Mais meia
hora e vejo um corpo alto e cansado chamar-nos. O cirurgião. Com o sorriso e o ar cansado
e despreocupado que lhe conhecemos chamou-nos para a entrada da UCI. Põe uma mão
em cada um dos nosso ombros e diz: “Saiu de bypass “a brincar”. Correu tudo lindamente.
Vai ficar óptimo! Daqui a 20 minutos já o podem ver”. Agarrei-me a ele a chorar. Chorei
durante 10 minutos convulsivamente.
Esperámos o tempo que nos pediram com a sensação de terem passado 2 minutos. Depois
de 2 anos o que nos pediam era fácil.

Encontrámo-lo lindo de morrer. A dormir profundamente e cor de rosa. Desde que nasceu o
amarelo tinha virado moda cá em casa.
Começou a andar 2 meses depois da cirurgia. Agora diz tudo, faz companhia, brinca
sozinho, adora a escola, devora livros, passa-se com carros, continua palhaço, é o maior
trapalhão, conhece a rua toda, gosta de ser gozão, acorda bem disposto, deita-se da
mesma maneira, parece a minha sombra mas eu adorava ser uma sombra do que ele é. É
amoroso, feliz e dá-nos lições de vida, todos os dias.
A única coisa que se mantém é o tamanho. Continua mínimo mas, como diz o ditado
“homem pequenino ou velhaco ou bailarino” e este vai dançar até ao fim dos seus dias ao
som da vida e do coração.”

obrigada I. pela tua força e por contares aqui, esta tua bonita história de vida

Uma verdadeira inspiração, força e garra. Uma grande MÃE.

Cacomae 
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